13 janeiro 2010

Casamento homossexual?


Na passada semana, o Prof. Diogo Freitas do Amaral escreveu, na revista Visão, o seguinte artigo sobre a sua opinião relativamente ao debate que marca o País, nas últimas semanas - o casamento entre pessoas do mesmo sexo. O artigo é notável e exemplifica o verdadeiro sentido da palavra "casamento".




"O que é o casamento?

Eis uma pergunta muito actual, mas a que poucos têm dado resposta. (Esclareço que vou falar aqui apenas do «casamento civil», e não do «matrimónio católico», que não está em causa). Legalizar as uniões de facto entre homossexuais como casamento significa alargar o conceito do casamento, e aplicar o respectivo regime, a essas uniões. Que elas existem, e se têm multiplicado, é um facto incontestável. Que para elas o legislador conceba um regime especial - do qual constem alguns aspectos do casamento - é, a meu ver, justo para quem decida fazer tal opção.

Todo o problema está, porém, em saber se essa «união civil familiar» deve ser tratada como casamento, para todos os efeitos, ou não. Ora, o facto de a qualificação das uniões homossexuais como «casamento» não existir senão numa escassa dezena de países (isto é, em menos de 5% dos Estados-membros da ONU) devia levar-nos a meditar sobre se estamos perante o início de uma evolução irreversível, ou apenas diante de uma moda passageira.

Um pouco de história talvez seja útil aqui. A instituição «casamento», enquanto união heterossexual e monogâmica, é muito antiga. Surge-nos primeiro nos textos dos «Direitos Cuneiformes» (Suméricos, 3.º milénio a.C.); depois, no Código de Hamurabi, imperador da Babilónia (1700 a.C.); e também nos outros grandes impérios orientais - Egipto, Assíria, Pérsia (do VIII ao IV século a.C.) -, bem como na antiga lei judaica (do III ao I século a.C.). Desta passou para o Cristianismo, com supressão do direito ao divórcio, mas com possibilidade de extinção da relação conjugal por declaração de nulidade ou por anulação.

Desta longa tradição de quase cinco milénios (em dez mil anos de vida do homem sapiens na região euro-mediterrânica), podemos concluir que o casamento, nesta civilização, foi sempre uma união heterossexual, monogâmica e tendencialmente duradoira, cujo regime jurídico tem sobretudo em vista impor aos pais deveres sérios em relação aos filhos, sobretudo menores e/ou incapazes.

É, em minha opinião, errado afirmar que «o casamento tem por fim a procriação»: todos sabemos que pode haver procriação sem casamento, assim como casamento sem procriação. Mas já será correcto dizer que o regime jurídico do casamento pretende contribuir, entre outros factores, para a sobrevivência da espécie humana. Em que medida? Na medida em que os bebés e as crianças (humanos) - ao contrário do que acontece com a generalidade das outras espécies animais - não são capazes de sobreviver sozinhos nos primeiros anos de vida. Precisam de protecção, alimentação, cuidados de saúde, e educação. Ora, se o ser humano começa por ser totalmente vulnerável e dependente, quem melhor do que os pais o pode proteger e ensinar a singrar na vida?

Daqui se conclui que o conceito e o regime jurídico do casamento, que há milénios preocupam os grandes legisladores, assentam num compromisso tendencialmente duradoiro dos cônjuges, que o Estado legaliza impondo a estes toda uma série de deveres necessários à protecção dos seus filhos.

O contrato civil de casamento não visa, portanto, conferir direitos, privilégios ou benesses, mas sobretudo impor aos pais deveres, encargos e responsabilidades parentais. «As Leis» (como diria Platão) perguntam aos noivos: quereis assumir oficialmente o compromisso de proteger, assistir e educar os vossos filhos? Nesse caso, concedemo-vos certos direitos, além de vos impormos os necessários deveres. Não quereis casar-vos? Muito bem, não vos puniremos por isso; mas, além de vos impormos todos os deveres de pais, não vos concedemos os direitos inerentes a quem se compromete oficialmente connosco a cuidar e tratar, de modo duradoiro, dos filhos que tiver.

Este é o conceito e o estatuto jurídico e social de casamento. E não se diga que ele é demasiado exigente, ou puritano, ou ascético: não compete ao legislador regular a felicidade e o prazer dos seres humanos; compete-lhe, sim, procurar evitar o sofrimento e a infelicidade dos mais desprotegidos ou vulneráveis. Ou seja, no que toca ao casamento, proteger os filhos, sobretudo os menores e os incapazes, contra o eventual capricho, egoísmo ou irresponsabilidade de alguns pais.

Sendo isto assim - pelo menos desde há cinco mil anos -, não parece fazer sentido chamar «casamento» às uniões familiares homossexuais. Estas constituem uma situação que merece respeito da parte de um Estado laico, incluindo alguns direitos inspirados nos dos cônjuges, mas não são idênticas à instituição do «casamento» enquanto tal: não são geradoras de descendência própria nem precisam, portanto, dos direitos de deveres dos pais em relação aos seus filhos.

Uma última faceta do problema merece ser ponderada: se a legalização do «casamento» entre homossexuais é, como se proclama, um factor decisivo de progressismo e modernidade, porque é que ela não foi até hoje aceite, com o nome de «casamento», nas grandes democracias europeias - nem pelo trabalhismo de Blair/Brown, nem pelo socialismo laico de Mitterrand, nem pela coligação alemã do SPD com os Verdes? E porque será que nunca existiu, nem existe, «casamento» homossexual em qualquer país comunista? Nem na esmagadora maioria dos países governados por partidos da Internacional Socialista?

Melancolicamente, temos de nos perguntar se a apressada legalização do «casamento» homossexual não será sobretudo uma forma de tentar recuperar votos à esquerda através de «temas fracturantes» que melhor ficariam acantonados nos pequenos grupos ditos de avant-garde."



In: Visão, n.º 879, pp. 38-39.